REFLEXÕES SOBRE A (IN)EFICÁCIA DA CONFISSÃO DA DÍVIDA PARA FINS DE PARCELAMENTO DE TRIBUTOS

Parcelamento de tributos

cláudio nunes golgo
advogado tributarista

No dia 16 de outubro de 2019, foi editada a Medida Provisória n° 899 com a finalidade de regulamentar o artigo 171 do Código Tributário Nacional que facultou a celebração de transação entre o ente público credor e o sujeito passivo devedor, com o escopo de extinguir sua dívida fiscal existente. Em troca da confissão irrestrita da dívida, a União Federal, por meio de seus procuradores, ficou autorizada a conceder um desconto entre 50% e 70% e celebrar contrato de liquidação entre 84 e 100 prestações, além de permitir um período de carência antes do início dos pagamentos. Não há dúvida de que se tratou de importante evento que facilitou a vida de muitos contribuintes que saíram da inadimplência que muitas vezes pode levar à morte civil, e assim puderam retornar ao mercado ou ao viver normal.

Pois bem.

O aspecto relevante que remete à reflexão tem a ver com o que pode acontecer com aqueles devedores que tiveram de aceitar inclusões abusivas impostas pela parte suprema da relação jurídico-tributária (fisco), quando do dimensionamento original da dívida para fins da obtenção do prestacionamento.

Estamos a nos referir à inserção de uma elevada multa por um fato diferente do realmente acontecido na origem do (auto)lançamento e/ou aos juros calculados de forma capitalizada.

Estariam os signatários dos acordos impedidos de rever na Justiça o tamanho do débito que tiveram de aceitar (confessar) na ocasião, para não perderem a oportunidade de ressuscitar, conseguida através de certidão de regularidade fiscal?

Temos certeza de que não! E é fácil de entender as razões.

A relevante questão de que se cuida tem a ver com o chamado princípio da legalidade, que é basilar na configuração do regime jurídico-administrativo e na essência do Estado Democrático de Direito. Essa prerrogativa, que é de todos os cidadãos e empresas que exercem atividades geradoras de tributos, garante-lhes o sagrado direito de sujeição ao pagamento apenas do que foi previsto na lei, porque o artigo 150 da Carta Magna diz que é vedado exigir ou aumentar tributo sem lei que preveja a hipótese.

A propósito deste importante tema de interesse dos que se obrigam à submissão de abusos fiscais, Hugo de Brito Machado, então desembargador do TRF/5, em 2003 registrou oportunos ensinamentos no seu apreciado livro Confissão de Dívida Tributária (http://www.hugomachado.adv.br).

Dessa interessante obra selecionamos estes excertos:

“Realmente, a confissão pertine ao fato, enquanto situado no mundo dos fatos, sem qualquer preocupação com o significado jurídico do fato confessado, vale dizer, com o efeito da incidência da regra jurídica. Daí porque a confissão pode ser revogada se houve erro de fato, isto é, erro quanto ao fato confessado, mas não por ter havido erro de direito.

Assim, se um agente fiscal de tributos federais lavra contra alguém um auto de infração por não haver este incluído em sua declaração de rendimentos e, por isto, não haver oferecido à tributação determinada herança, ou doação recebida (casos de não-incidência), ou determinado rendimento que, segundo a lei, é isento de imposto, a confissão que esse alguém venha a fazer da dívida respectiva é inteiramente desprovida do efeito que o fisco geralmente pretende atribuir. É que o fato confessado, ainda mesmo sendo verdadeiro, não produz a consequência de fazer nascer a obrigação tributária.

Quando a norma contida na legislação pertinente ao parcelamento de dívidas tributárias diz que a confissão é irretratável, tal norma deve ser interpretada no sentido de que, uma vez feita a confissão, não pode o sujeito passivo da obrigação tributária desfazê-la simplesmente, retirando as afirmações que fizera sobre o fato. Mas, se constata que o fato por ele confessado não ocorreu, ou não ocorreu tal como confessado, o que dá no mesmo, então poderá elidir os efeitos da confissão provando o erro.

A interpretação da irretratabilidade em termos de absoluta impossibilidade de revogação implicaria atribuir-se à confissão da dívida tributária natureza contratual que ela não tem. Aliás, ainda que a confissão tivesse natureza contratual, não se poderia admitir que a dívida de tributo dela se originasse. O tributo, ou é devido como simples consequência da incidência da norma, ou não é, se incidência não houve. A vontade do sujeito passivo, bem como a vontade da Administração Tributária não podem ter a virtude de criar a dívida, porque (segundo Enrico Allorio e Mario Pugliese) a obrigação tributária, por ser de direito público, só pode emanar da lei, não podendo ser alterada pelas partes. Os sujeitos (fisco e contribuinte) não podem transigir, desistir, fazer compromissos ou alterar a obrigação tributária, a não ser que a lei os tenha expressamente autorizado.”

Sendo assim, se a legislação não foi perfeitamente cumprida ou interpretada quando da autuação fiscal, ou se o sujeito passivo se equivocou ao autodeclarar de forma inexata um débito para com o fisco, sua confissão de dívida nasce maculada pela nulidade, porquanto é soberana a regra principiológica da legalidade segundo a qual a Fazenda Pública somente pode arrecadar o que a lei prevê para cada hipótese de incidência ou de aplicação da respectiva norma, envolva ela o principal (tributo) ou os seus acessórios (multas e juros), posto que repugna ao sistema jurídico posto o enriquecimento sem causa (ilícito).

Por todos esses conseguintes, dá para se concluir que os signatários dos parcelamentos decorrentes da MP 899/20129, embora tenham assinado termos de confissão de dívida com cláusula de irretratabilidade, podem revisar judicialmente seus prestacionamentos, se constatado que contiveram eles inclusões abusivas no dimensionamento da conta imposta.

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